MEMÓRIAS DE DOMINGOS TEIXEIRA (Continuação)

 
Esta nova página que decidimos abrir, uma vez que  página já existente Memórias de Domingos Teixeira começa a ter uma dimensão muito grande, destina-se em exclusivo a reportar todos os episódios relevantes dos cadernos que este bujoense, já a caminho dos cem, em boa hora decidiu escrever, não só porque o faz brilhantemente, como é um exemplo para todos aqueles que, infelizmente,e porque não os move o sentimento da partilha, levam consigo, quando partem, aquele mundo mágico da infância, as recordações que marcaram as suas vidas, perdendo-se, assim, a memória individual e colectiva que é a alma e o alimento cultural que balizam os sentimentos mais nobres do ser humano. Por isso se diz que RECORDAR É VIVER.
 
DOMINGOS TEIXEIRA é um escritor fantástico, merecedor de todos os elogios não só pela sua prodigiosa memória, como por nunca se ter deixado vencer pelo facto de não ter aprendido a ler e escrever. Fico admirado e até comovido pelo exemplo maravilhoso que este homem bom representa.
Ele escreve à sua maneira, não importa se com erros ou sem erros. O que importa verdadeiramente é que ele transmite a todos nós, nos seus três caderninhos que já escreveu, um conjunto de memórias do seu passado humilde e sofrido, erguendo-se com a sua inteligência e o seu "computador" para recordar com o mesmo grau de simplicidade aqueles velhos tempos em que o buraco de Bujões tinha gentes que no meio de tanta pobreza deixaram uma marca que confirma uma verdade indesmentível- ser bujoense é uma honra! Colocar neste blogue mais um conjunto de memórias do tio Domingos Teixeira, vivendo lá longe nas terras do Brasil, é outra honra. Que ele continue a escrever durante muitos anos, seria a melhor herança que ele poderá deixar aos seus familiares. Tardará algum tempo até que consigamos transcrever as suas memórias e alguns contos, mas não nos faltará a vontade, nem isto é favor algum, bem antes pelo contrário, porquanto somos nós bujoenses que ficamos agradecidos ao nosso emérito escritor! Bem haja, tio Domingos Teixeira. Não deixe parar o computador!
 
 

Domingos Teixeira, um bujoense com imensas memórias!
 







PASSEIO EM BUJÕES
 
Todo o morador de Bujões
Todos têm uma história
Estou aqui eu para contar
Graças à minha memória
 
Vou falar de Bujões, dos costumes da vida antiga, das famílias generosas que me ajudaram a criar, da nossa gente, dos nossos saudosos velhos tempos ruins que passaram, para essa mocidade de agora ter conhecimento do que era Bujões, isto é Portugal.
Eu conheci Portugal. Era tudo igual no meu tempo de criança. Havia tudo com fartura para comprar quem tinha dinheiro, que eram poucos. Até os lavradores viviam com dificuldade, sempre com dívidas. Era tudo caro e como já falei, não havia dinheiro, não havia trabalho. Ia-se para as quintas ou para fora. Sabrosa, Provesende, Passos e outros lugares.
Esta foi a primeira situação que o povo passou durante anos. Quem tinha era pobre, quem não tinha mais pobre era.
Veio a segunda guerra mundial. Portugal se encheu de gente e de dinheiro. Era o minério. Havia minério de muitas qualidades e preços. O volfrâmio chegava a dar mil escudos por quilo. Uma pedra bem pequena dava um quilo. Era pesado. As serras pareciam cidades. Muita gente de todo o país e de fora vinham à procura do negrinho, que era o volfrâmio.
 

     O filão do negrinho, o volfrâmeo, que tantos bujoenses procuraram...

Não havia gente para cuidar das terras. Os lameiros viraram mato. As vinhas viraram matas de pinheiros. Os lavradores e todos corriam para as serras. Houve lugares que viraram aldeias. Acabou a guerra, acabou tudo. Antes de uma semana as serras ficaram desertas com aquelas aldeias de barracos e com aquelas escavações. Ficou tudo abandonado.






   Por todo o lado, onde havia exploração de volfrâmio,
mal a guerra acabou, ficou tudo abandonado...
Houve gente que levou dinheiro para a serra, pediram emprestado pagando juros, até tirando nos bancos para pagarem aos donos daquelas terras e para explorarem o minério.Houve gente que trabalhou e quando apareceu o filão do minério que era uma rocha, acabaram aquelas fortunas  que naquele tempo eram valiosas. Hoje, não vale nada.
Era tanta a ilusão que até a tia Maria Guixa que  tinha uma taberna em Bujões, fechou para abrir uma taberna na Arcã, perto da Senhora da Saúde. Não ficou rica. Tinha que comprar tudo que era bom, como queijo, pernil, fumeiro, tudo para atender aquela gente retrasada que, antes, só conhecia cabras e lobos. Comiam e bebiam e às vezes não pagavam nada. A tia Guixa não falava porque era pior. Era gente selvagem. Eu conhecia bem. Morava perto numa casa que o tio David Comba alugou. Morava lá eu e o tio António Cego e o irmão David. Andámos ali perto, na Arcã, explorando minério numa leira que o tio David Comba , pai do António Cego e do David alugou. Gastávamos tudo da venda da tia Guixa e do Sr. Adriano.

 


Na Arcã, perto da Senhora da Saúde, ainda
há ruínas dos tempos do volfrâmeo.

 
Isto é uma história ruim de se acreditar.
Essa leira que o tio David Comba alugou- eles chamavam leira a uma terra onde semeavam, trigo, centeio, batatas e outras coisas- era bem elevada. No fundo passava um riacho em que corria água da serra. Em cima era rocha e sempre no final da rocha havia um filão de minério. A leira era tudo barro. Começámos longe da rocha abrindo uma mina em direcção à rocha. O António andava cavando o que era mole e eu e o David tirámos a terra que o António cavava. Andamos e só dava terra.



                                                      
 António (Cego) e David Comba(filho)
 na rota do volfrâmeo...

Dois irmãos Comba
filhos do tio David Comba







O tio David passava lá dias, já estava dizendo que não vai aparecer nenhum filão, mas o António era teimoso continuou e bateu no duro. Era o filão. Pegou um ponteiro, uma marreta e conseguiu tirar um pedaço pequeno de 3 quilos. Era tudo volfrâmio. O António só teve tempo de pegar aquele pedaço de pedra, que era tudo minério, mas já vinha tocado com a água. Num instante, a água corria pela ladeira abaixo. Era um rio que passava ali e levava a água para todas as aldeias, até para do outro lado do Rio Douro,  Armamar, do lado de Santa Eufémia, parte de Lamego, e faltou a água. Andávamos abrindo uma valeira ao fundo da local do riacho que passava nos fundos da leira até onde saíu aquele rio de água, quando apareceu um bando de gente com aparelhos que vinham seguindo o canal que levava as águas para aquelas terras. Ali pararam, onde estava cortada e logo interditaram e lacraram. Tivemos de parar. Lá ficou um filão de minério que ninguém podia mexer e a água voltou ao normal naquelas terras. É ver de onde vem a água para aquelas terras passando por baixo do Rio Douro! O que é a natureza! Isto foi no fim e em pouco tempo acabou a exploração. Cada um voltou para os seus lugares. O tio David entregou a casa, a tia Maria Guixa largou o negócio com muito prejuízo. Logo que não havia compras de minério, o dinheiro acabou rápido. Foi como um incêndio. Queimou todo o dinheiro. Aquela gente que antes só sabiam lidar com cabras e lobos, ficaram malucos. Eram gente com dinheiro. Acabou, ficaram piores que dantes. A tia Maria Guixa se fechasse logo ainda saía ganhando alguma coisa. Demorou a fechar, aquela gente eram uns farristas, ficaram comendo e bebendo e já não tinham dinheiro para pagar. A tia Guixa teve prejuízo.
Naquele tempo havia muito dinheiro, Portugal tinha dinheiro de mais mas não havia o que comprar. Não havia nada e o que havia era muito caro. Era tudo por tabela e o preço de tudo era igual em todo o Portugal. O governo fez uma lei que tudo o que o lavrador colhia tinha que dar ao manifesto, isto é o governo queria  saber tudo que o lavrador colhia. Havia uma tabela do pão ao arroz. Dava umas gramas de cada produto para cada pessoa.

Senhas de racionamento do pão.
Havia senhas para todos os produtos de primeira necessidade.
Em baixo, as filas na cidade do Porto para obter senhas de racionamento.

Era igual tanto para o rico, como para o pobre, mas havia muita diferença.  Esta lei começou quando havia muito dinheiro, mas o dinheiro acabou, ficou na mão dos ricos e os pobres ficaram pior, sem trabalho, nem dinheiro, vivendo nessa miserável tabela. O povo passou muita fome. Era tudo vendido para fora por muito dinheiro e o povo passando fome. Isto no tempo da guerra. Só que no tempo da guerra havia muito dinheiro. Era uma loucura com o minério nas serras. Era coisa de malucos. As aldeias sem gente, andava tudo nas serras procurando o pretinho. Acabou a guerra, acabou o minério, acabou o dinheiro e o povo ficou sofrendo a mesma coisa ou pior com aquela tabela do governo.  Os preços eram iguais em todo o Portugal e havia tudo, mas os comerciantes enganavam o povo vendiam um pouco da tabela e diziam:
-Acabou!
Escondiam para vender fora da tabela que era muito mais caro e quem sofria mais eram as famílias. Algumas que tinham terras, vinho e azeite, as terras estavam mal tratadas, não tinham dinheiro para tratar delas. Por vezes nem tinham dinheiro para comprar sulfato para curar o míldio das videiras. Eu já falei que cada morador, cada família tem uma história. Se me derem licença, vou contar a história de cada família. Vou falar bem, porque mal nenhum tem nada para contar. Todos viviam na paz de Deus, todos se conheciam e respeitavam, mas aos domingos na venda sempre havia uma discussão. Era o vinho!
Mas em Bujões havia uma juíz de paz. Havia uma discussão, tanto com homens como com mulheres e ela aparecia. Logo os agressores se acalmavam. Se ela não aparecia, era só uma pessoa gritar
– Chama a tia Clotilde!…

 
Tia Clotilde- Se ela não estiver no Céu, o Céu está vazio
                                    
 
Ela chegava, falava com os dois brigões, dizendo que aquilo era o vinho. Eles escutavam e ficavam já falando e bebendo do mesmo copo. Isto era uma parte da Juíz de Paz, o que estou falando. Mas tem mais  que merece ser contado pelo respeito que ela merece de toda a população. Ela só fazia bem a todos e a todos respeitava e ela também era respeitada por todos.  Vê o  quanto ela fazia para que o povo gostasse dela e a respeitasse: nove dias antes do Natal fazia todas as noites a novena do Menino Jesus que enchia a Capela de gente, homens, mulheres e crianças. Na Quaresma, todos os dias, fazia  de manhã, ainda de noite, as 14 estações  percorrendo a aldeia. Tudo coisa que só ela sabia fazer e tinha tudo isso no seu livro, até para rezar por quem estava morrendo. Quando estava alguém doente, lá ia a tia Clotilde correndo com o seu livrinho na mão rezar por aquele irmão que estava morrendo. Convidava o povo para rezar o terço à noite na capela, que enchia de gente. Era isso que essa alma de Deus fazia no povo de Bujões. Eu digo, essa alma está no Céu. Se não está, então o Céu está vazio, só tem crianças.
Foi uma guerreira, sofreu para criar e educar os filhos. Mas um dia, graças a Deus e aos seus governantes, acabaram com o seu sofrimento e melhorou a sua vida. Graças a Deus!
Vou falar de outra família . Eu já disse que cada um tem a sua história. Não é mal. É para se saber  e recordar  o que cada um passou nesse saudoso buraco que é Bujões. O tio Vicente do Picoto morava com a sua família, a esposa Maria Luísa e seus filhos que eram muitos. Era um graduado da Guarda Republicana.

 
Vicente Comba, um homem muito respeitado
 e que ajoelhou perante o andor do Senhor do Calvário

Não sei qual era o posto, falava que era tenente. Sei que era eu uma criança, mas me recordo quando a Guarda de Poiares passava por ele e sempre lhe faziam a continência. Ia muito a Poiares onde fazia as suas compras e era lá que recebia o seu salário da pensão e sempre entrava no posto da Guarda para conversar com os amigos. O tio Vicente do Picoto era muito respeitado. Um homem bom, farto, tratava bem o pessoal e pagava bem. Quando precisava de gente para o trabalho vinha ao povo e levava quantos queria, homens e mulheres. Era irmão do tio Francisco Comba, da tia Arminda, do tio João Pequeno. Eram Combas, a maior família de Bujões. Me lembro que todos eram católicos, mas o tio Vicente do Picoto tinha um coração bom, acredito que nele havia muita fé, e era verdade. Numa festa que houve em Bujões, o tio Vicente do Picoto estava no povo escutando a música. Ele estava vendo a procissão e, quando passou o andor do Senhor do Calvário,  se ajoelhou com as mãos erguidas e toda a gente olhando para ele, todos admirados!
Há pouco atrás ele tinha feito uma má acção. No meu tempo, na Páscoa, o Padre, o sacristão, com a Santa Cruz, andavam pelo povo, de casa em casa, e davam o Senhor a beijar. As crianças andavam na frente e beijavam o Senhor em todas as casas. Estava nas Lages, na casa do tio Manuel Cigarro e aí as crianças correram para o Picoto. Chegando perto, parámos. Eram muitas pedras que caíam perto de nós. Eram os filhos do tio Vicente que não deixavam a gente subir. O padre falou:
- Eles não querem que vocês entrem, mas eu e o Armando (era o sacristão) vamos levar a Santa Cruz para que eles beijem o Senhor!
Mas como as pedras  não paravam, o padre e o sacristão voltaram todos.
Ficaram falando que o tio Vicente do Picoto não queria nada com Deus, nem com o padre, mas tempos depois, na festa, viu-se aquela cena! O homem que não queria nada com a religião, vê-lo, ali, de joelhos no chão, de mãos erguidas, pedindo perdão ao Senhor do Calvário!
Se falou que foi um milagre! Daí em diante os filhos já eram outra coisa e ele passava pela Capela já tirava o chapéu, coisa que não fazia. Na Páscoa já recebia o padre e todas as crianças. Servia para o padre e o sacristão vinho e salgados. Todos beijavam o Senhor. Mudou tudo no Picoto, graças a Deus. O tio Vicente do Picoto e a esposa tia Maria que gostavam de tratar bem os trabalhadores ficaram até melhores e até parece que com mais vontade de viver. Tinha muitos filhos. Tinha o Francisco que era um pouco doente. Fazia todo o trabalho com a burra. Vinha na fonte carregar no lombo da burra dois canecos de almude cheios de água. Era essa a história que eu conheço do tio Vicente do Picoto e da família.
Agora vou contar a história do irmão dele. Tio João Pequeno, ou João Comba. Era um homem baixo. Eu conheci-o, já era de idade. Estava casado, tinha filhos. Era trabalhador em serviços mais leves. Era um bom enxertador. Mudava a cor da uva e das flores. Casou com uma rapariga que não era de Bujões chamada Carolina. O tio João Pequeno gostava de festas de fim de ano – Natal e Ano Novo – que era quando o vinho era mais gostoso, segundo ele dizia.


Tio João Comba ou João Pequeno. O vinho
no Natal e Ano Novo era mais saboroso!

 
Antes do Natal ele e os filhos saíam com ferramenta para a mata procurando um toco de pinheiro – o toco era a parte que ficava na terra depois do pinheiro ser cortado. Eles iam cavando em volta e tiravam aquele toco enorme. Iam rolando o toco, com eles e a ajuda dos rapazes que iam para brincar. Era longe de casa, demorava tempo mas conseguiam trazer o toco atá casa para subir para a cozinha. Tinha escadas, era preciso gente para o levar para entrar para a cozinha. Não cabia na porta. Era preciso cortar para entrar. Colocavam ele na cozinha  que era funda. Tinha espaço para sentar em volta e no dia 23 de Dezembro acendiam o toco. Dia 24 o toco estava queimando bem e já dava para cozinhar as batatas, a couve, a raia, as fritas e tudo para a ceia de Natal. A raia, o tio João pequeno comprava 15 dias antes do Natal. Nesse dia a raia estava fumando, queimava na boca, mas era assim que eles gostavam dela. Bebiam mais vinho! No dia 24 a casa ficava cheia de gente para beberem e brincar e para visitar o Presépio do Menino Jesus que o Francisco e os irmãos faziam. Era bonito de se ver e aí passavam a noite comendo e bebendo com o calor do toco. Havia anos que a neve estava alta na rua, mas na casa do tio João Pequeno e da tia Carolina não havia frio. Ele não colhia vinho, mas no Natal e ano Novo e todas as festas no ano, não faltava vinho na sua casa. Os irmãos e amigos davam o vinho.
O tio João Pequeno casou com uma rapariga chamada Carolina. Era de uma família que veio de fora, perto da Régua. Eram 7 pessoas: pai, mãe e 5 filhos, 4 meninas e um menino, mas já eram crescidos. O pai era conhecido por Manuel dos Socos. A mãe era conhecida por Ana Anjinha. Uma filha se chamava Carolina, outra Idalina, outra era Etelvina, uma menina não sei o nome e tinha um homem chamado Chico. Era um habilidoso, tudo sabia fazer, todo o instrumento de corda ele fazia e bem feito. Não vou afirmar, mas acho que os dois instrumentos que tinha o saudoso João Cego – um violão e um violino-  foi ele que fez. Era uma família de 7 pessoas que veio de fora e se tornou uma família grande porque as filhas casaram com filhos de famílias também grandes. A Carolina casou com o tio João Pequeno que era João Comba, a maior família de Bujões.
A Etelvina casou com o Francisco Grande, também era da família Santos e Araújo. A Idalina casou com o Manuel Grilo, filho do tio Chaco-Chaco e da tia Maria da Fonte. Essa família era mais pequena. O Chico não casou nem trabalhava nas vinhas. Só fazia instrumentos de corda que vendia. O pai, o tio Manuel dos Socos trabalhava nas vinhas, mas só na enxertia, poda, todo o serviço leve. Ele não tinha enxada para cavar.  O tio Manuel dos Socos, a mulher tia Ana Anjinha e família todos iam na festa da Senhora dos Remédios, em Lamego, mas não levavam merenda nem dinheiro para comer. Mas não passavam fome. Na hora das refeições se amarravam perto de conhecidos,como se fossem convidados para comer. Noutra hora se encostavam perto de outra família e comiam. Era assim todos os anos. Era boa gente. A Carolina casou com o tio João Pequeno e tiveram filhos, aumentou a família. O mesmo aconteceu com o tio Francisco Grande e a Etelvina. A mesma coisa aconteceu com o Manuel Grilo e a tia Idalina, mas estes pouco aumentaram.
Assim se fica sabendo da vida de mais uma família de Bujões, que todas elas têm história.

Texto do caderno 3
de Domingos Teixeira




 

MEUS VELHOS



Vamos mandar uma mensagem para o Domingos.
Ele tem que escrever até aos 100 anos...
 
Vou falar de gente de 1927 para cá. Eu só tinha entre 5 a 6 anos, mas me recordo deles, e bem, graças a Deus. Na Presa havia uma casa que já disse que falavam ter sido a primeira a ser construída em Bujões. Morava lá um senhor chamado António Augusto. Eu era criança e ele já tinha mais de 100 anos! Morava só. Andava com auxílio de um pau. Vivia pedindo esmola e roupas usadas. Havia gente que o socorria. Eu ia muito lá porque me dava côdeas de pão. Naquele tempo só havia pão de milho. Para cozer bem aquelas broas de milho, as côdeas eram duras. Ele e todos os idosos comiam o miolo e deixavam as côdeas que davam para as crianças, como eu.
O tio António Augusto contava casos da vida dele. Contava que os avós eram descendentes de mouros que viviam refugiados. Eu, com o tempo, fui-me apegando a ele. Levava roupa dele que a minha mãe mandava depois de lavar e fui conhecendo mais o tio António Augusto. Não tinha certidão de idade, tinha um papel já bem velho que era da igreja. Dava para ver que já tinha mais de 100 anos. Um dia, gente que vinha trabalhar, acharam ele morto dentro de casa.
Depois vinha o tio João Bailão. Isto é, gente que iria chegar perto de 100 anos ou mais, como o tio Manuel Barbosa, o tio Manuel Soqueiro velho, a tia Rosa dos Santos, ou tia Rosa da carne, o marido tio Alexandre, a minha avó Lúcia do Gago, o tio Jerónimo, a tia Maria Cigarro, o tio António Porquito, o velho, a tia Maria Pires e marido António Augusto. Havia o tio Felizardo, o tio João Pequeno, a tia Margarida Calça Larga, a mãe do Senhor Araújo e uma senhora chamada Elvirinha. Me lembro do tio Manuel Botelho e sua esposa. Na minha ideia se chamava tia Rita. Havia a tia Filomena Comba, tia Guiomar do Moirão e uma senhora que morava na casa dos Alferes. Estava sentada numa cadeira, já não saía de casa. Havia o tio Domingos Cardeal e sua esposa Maria.
Nas Lages me lembro da tia Delfina Cigarro, mãe do tio Manuel Cigarro, velho.
Se não me esqueci de alguém, são estas as pessoas que eu conheci no tempo de menino e que chegariam a quase 100 anos. Se não me esqueci, e a memória não falha, são 26 pessoas com perto de 100 anos,  que eram daquele tempo. Se pesquisarem vão ver que não estou muito errado.
Eu desde os 14 anos sempre fui muito doente. Passava noites que não dormia com tantas dores de estômago. Andava trabalhando com uma garrafa de água com bicarbonato. Quando doía, tomava um golo daquela água e passava por pouco tempo e voltava. Eu trabalhava na casa do senhor João Ubaldo, em Vila Seca. Havia fartura de tudo mas eu tinha dias em que não podia comer nada. Vim para Lisboa e era a mesma coisa. Vim para o Brasil e era igual. Passava noites que não dormia. O primeiro ônibus ou carreira que me levava para o trabalho passava  às 4 horas  e eu me levantava para ir trabalhar. Passei a noite tomando copos de leite, fumando, e a mulher, aquela alma de Deus que me colocava toalhas com água quente na barriga. Eu usava uniforme, calça, camisa branca e gravata preta. Trabalhava de bilheteiro numa empresa de ónibus, Empresa de Viação Barra. Eu só comia tudo sem sal e andei assim anos. Aí me operaram e graças a Deus fiquei bom. Como já falei, passava noites sem dormir mas o computador não parava. Me lembrava de todo o passado, mas naquele tempo era novo. Agora com os meus 91 anos …
Passo mal , mas estou escrevendo o meu terceiro caderno. Foi passando mal que me deu vontade de escrever. Peguei um caderno que a minha filha me comprou e comecei a escrever a minha vida, mais um pouco. Com a ajuda dos meus velhos, é tudo gente boa de Bujões que enchiam a Capela, a  Escola, as eiras, todos os largos, as salas aos domingos. Havia baile ou na rua ou numa sala, havia gente para dançar, crianças para brincar  e idosos para se se divertirem. É esse Bujões que eu falo. Dá saudades! Hoje não tem nada do que estou falando. É triste. Será que vai voltar esse tempo ?
Só se houver outra encarnação. Aí, vamos estar juntos, vamos estar mais jovens, mais bonitos e até mais inteligentes. Vai haver tempo para nos ajeitarem melhor. Se houver outra encarnação, que me encontre com aquela gente boa. Eu não queria mais nada, só queria a minha casinha do bairro, que foi onde comecei a minha vida e eu adorava.
Vou terminar a história dos meus velhos. Voltarei a falar deles se Deus quiser.



O meu computador já não funciona como o do Domingos. 
Bem que eu gostava de contar o que passei nesta vida.

 

NO MEU TEMPO, EM BUJÕES,
SE ESCUTAVA GENTE A CANTAR
HOJE VAI-SE A BUJÕES
NEM SE VÊ NINGUÉM ANDAR
EU ATÉ ESTOU PENSANDO
QUE BUJÕES VAI ACABAR!


 
Texto do caderno 3 de
Domingos Teixeira




O FLORISTA

 
Pensei que a história de Bujões estava no fim, mas Bujões cresceu e me veio esta recordação de menino. Gente que usava os costumes e fazem parte da história de Bujões.
Quando criança, eu brinquei mas só com meninos que não tinham medo que eu lhes pegasse a pobreza. Mas como já falei, em Bujões tinha muita gente, muita criança, que não tinha essa maldade, nem preconceito de família. Me recordo uma família de três pessoas: a mãe, um menino e uma menina que se chamava Palmira. O menino se chamava Horácio. Não conhecia o pai deles que estava no Brasil. Mandava dinheiro para os filhos, e para mim não me ia mal. Aquela baixinha me matava a fome. Se chamava Deolinda Chanata. A filha era a Palmira Rolinha.

 

A tia Palmira (Rolinha)

 
Eu fui trabalhar, o Horácio foi para Lisboa e não mais nos vimos. Me recordo que chegou uma família do Brasil e eu não conhecia ninguém. Com o tempo fiquei conhecendo. Era o Senhor Bento, a Esposa Dª Marieta, as filhas que eram as meninas Celina e Estela e um filho chamado Serafim. Casou com uma filha do Joaquim do Jaime, de Poiares. Tinham uma menina que se chamava Lurdinhas. Eu mal conheci. Vivia com os avós que eram os Balandrões, gente nobre de Poiares. Junto com a família vinha um senhor chamado Ilídio. 
Uma figurinha dos costumes e história de Bujões. Eu ainda brincava com o Horácio e com a sua irmã Palmira, que era uma bonequinha. Eu notava que aquele homem se aproximava muitos das crianças, falava com elas e dava-lhes dinheiro. As crianças chamavam-lhe pai, mas ele não entrava na casa nem falava com a tia Deolinda.
Eu falava com minha mãe que o tio Ilídio não falava com a tia Deolinda Chanata. A minha mãe não me explicou direito, mas não demorou. A tia Deolinda Chanata comeu uma fruta que o tio Ilídio não gostou e por isso não viveu mais com ela que se juntou com o tio Manuel dos Santos. Juntos tiveram um filho chamado Benedito que ainda é vivo e o Ilídio se juntou com a histórica MICAS e tiveram uma filha chamada Irene.
Eu falo que o Ilidio e a Micas eram duas figuras históricas.
 



O Tio Ilídio, aqui de barbas, quando entrou numa
peça de teatro,enchendo o copo ao tio José Santos.



A tia MICAS, ao lado da filha Irene.
Uma figura histórica que os bujoenses não esquecem








Conheciam todos os costumes da história de Bujões. Na Quaresma, à noite, havia um conjunto de mulheres e homens que cantavam o Pai Nosso, a Salve Rainha, tudo em verso. Era no pátio da Capela e a cada Pai Nosso davam uma badalada na sineta que era para todos rezarem. No fim davam três badaladas. Era para rezar uma Salve Rainha.
O Ilídio e a Micas faziam parte desse coro. Também na Quaresma, de manhã, ainda de noite, havia a Via Sacra que a tia Clotilde fazia. Eram 14 estações. Se corria o povo todo. Acabava na hora de todo o mundo ir trabalhar. Em todo o mês de Maio se rezava o terço à noite. Sempre estava a Capela cheia de mulheres, homens e crianças. Dia 13 se fazia uma procissão com o Andor de Nossa Senhora de Fátima, um andor bonito, armado com flores de diversas cores e quem o armava era o mais entendido em flores – o Ilídio.
No Natal, havia a novena de menino Jesus, 9 dias antes do dia de Natal e lá estava a tia Clotilde. Para fazer uma festa durante o ano se faziam leilões. Quem era o leiloeiro? O Ilídio, que era o melhor. Pela idade não podia trabalhar no pesado, mas fazia muito serviço. Tinha serviço que ele era perfeito, como nas vindimas, nas malhadas e outros serviços.
O Ilídio e a Micas são conhecidos em Bujões e fora.  A Micas era um bom braço de trabalho. Ela fazia de tudo, até de parteira.
Ela era muito divertida, tinha brincadeiras que só ela sabia fazer, como esta:
Eu já falei que o tio António Augusto faleceu na casa da Presa. Não tinha ninguém para fazer o enterro. O povo se juntou para sepultar o velho. Quem fazia os caixões era o Senhor Acácio, em Abaças, mas era muito caro. No senhor Domingos Sapateiro, de Vila Seca, era mais barato. Estava lá gente para trazer o caixão. Em Vila Seca sempre estava muita gente de Bujões e onde estava a Micas. Vinham com o caixão e quando chegaram nas Lages a Micas falou:
- Gente, vamos fazer uma brincadeira. Eu me deito no caixão e dão a volta comigo ao povo. Eu me finjo de morta!
Todos aprovaram e estava um que era de brincar, chamado Victorino. Logo se aprontou para fazer de padre e não tinha outro melhor!
A Micas se deitou no caixão, taparam-na com o véu que vinha para cobrir o defunto, ajeitaram ela bem no caixão e saíram andando.
Logo na Fonte abriram o caixão. As mulheres que estavam lavando roupa já acompanharam por todo o povo. Foi juntando gente e quando chegou ao Largo do Seixo, já estava cheio de gente. Abriram o caixão, a Micas parecia mesmo morta. Não se mexia. O padre falando, que era o Victorino, filho do tio Jerónimo, e a Micas foi mexendo uma mão, a cabeça e levantou-se ficando em pé no caixão. Todos batendo palmas! A Micas saiu para fora do caixão e entregaram para o dono que era o tio António Augusto que já estava esperando para ser velado na Capela. Dali saiu para a sua casa perpétua que é o Cemitério e dai para o Céu. Que Deus o tenha em paz.
A Micas fazia muitas brincadeiras!
Na noite de São João era costume todos os rapazes andarem com uma escada roubando vazos que as raparigas punham nas janelas. Levavam-nos para a Fonte. Apareceu uma mulher vestida de branco, pulando, rindo, na nossa frente. Todos corremos, pensando logo na Micas. Corremos e ela pulou para a Socarreira, se enfiou por entre o milho e desapareceu. Nós falámos que era uma feiticeira, viemos para o Seixo e apareceu a tia Micas. Vinha de casa e falou:
- Meus medrosos, tivestes medo de mim que não me pegastes!
Tinha essas coisas que merecem um canto! Ela e o Ilídio – ainda não acabou a história dele – mas eu falo que são duas figuras que devem ficar sentados debaixo de uma árvore, que em Bujões tem muitos contando as suas histórias!
O Ilidio é tudo o que já falei dele, mas tem muito mais como a voz marcante para cantar na missa. Era o melhor Coro que havia de igreja, comandado pelo nosso saudoso João Cego, que Deus dê paz na alma dele também. É uma figura que merece respeito na história de Bujões. Ele, o Joaquim da Cândida, o Artur e outros que tocavam no Coro e nos bailes. O Ilídio era um amigo, baixo, mas homem bastante para ser respeitado. Ele sempre falava de meu pai. Esteve muito tempo no Brasil, conhecia o meu pai. Morava perto do Rio Comprido e Tijuca. Era onde morava parte da gente de Bujões. Muitos moravam na rua Marquês de Sapucaí. Tinha uma fábrica de cerveja Brahma e perto o mercado de flores, onde trabalhava o Ilidio e outros vizinhos. Todos moravam perto. O Ilídio falava já em Bujões, mas quando eu cheguei ao Brasil fiquei conhecendo e era igual. Conheci um senhor e fomos amigos até que Deus o levou. Chamava-se António. Já não era novo. Tinha duas casas de flores. Homem bom. Os meus filhos José e Pascoalina carregavam os extintores de incêndios dele. Por isso fomos muito amigos. Me falava do Ilídio que trabalhou muito tempo com ele. Falava que o Ilídio era o melhor florista.
 
Numa loja de flores, como esta, o Ilídio era o melhor florista!
 
Todos falavam nisso. O senhor António falava de muita gente de Bujões, mas ninguém me falou onde morava o meu pai ou alguém da família. Moradores que viviam ao lado, falavam:
- O seu pai morava ao lado, morava nesta casa com uma mulata e uma menina. Falava que era sobrinha.
A informação era certa, mas para onde foram ninguém falava. Houve uma gente que falou que eles estão no Estado do Rio, mas o endereço não sabiam. Mais tarde apareceu muita família, como uma tia, irmã do meu pai, primas, primos e uma minha irmã que sabia que existia, mas não conhecia. Visitei e fui visitado por família, mas em pouco tempo sumiu tudo. Foram morrendo e só ficou uma prima em terceira ou quarta geração. Procurei tanto a minha família e no enterro de uma prima fiquei sabendo que a nossa morada era a 20 metros de distância do Cemitério de Inhaúma.

 





Cemitério de Inhaúma

O que é a vida!
Vamos louvar o ILIDIO e a MICAS. O que eles fizeram em Bujões, merecem ser chamados de BUJOENSES!
   
 
QUANDO ESTAVA ALGUÉM DOENTE
E QUE JÁ ESTAVA A SOFRER
LÁ ESTAVA A TIA CLOTILDE CORRENDO
COM O SEU LIVRO NA MÂO
REZAR POR QUEM ESTAVA MORRENDO
 







TIA MELRA

 

Eu sempre falo que todo o morador de Bujões tem uma história e vou falar de mais uma pessoa bem conhecida em Bujões e aldeias próximas. Estou falando da tia Delfina Melra. Era assim conhecida. Tinha mais de meia dezena de filhos.  Era uma mulher que nunca a vi a trabalhar, mas vivia e criou os filhos. Estava casada com o tio António Raboto, era assim conhecido. Viviam separados, mas ele ajudava a criar os filhos. Era trabalhador, era um bom serrador. Sabia trabalhar com uma junta de bois, que a maior parte andava em casa de lavradores onde tinham esses animais. Esteve muito tempo trabalhando com o tio Manuel do Corgo, em Guiães.
 



Era assim Guiães quando em 17 de Dezembro de 1913 a tia Delfina das Dores casou com António Timpeira, que trabalhou muito tempo bem perto deste local, em casa do lavrador tio Manuel do Corgo.
 
 

 
Contam uma história dela em que a tia Delfina das Lages, mãe do tio Manuel Cigarro, tinha muitas galinhas, que ela nem sabia quantas. As galinhas punham ovos pela mata das Lages. Quando ela ia ver, lá vinha uma galinha com uma porção de pintainhos. Por isso, tinha sempre frangas novas. Um dia, a tia Delfina Melra foi às Lages e comprou umas frangas à tia Delfina Cigarro e levou de presente à mulher do tio Manuel do Corgo, onde o tio António Raboto estava trabalhando. A patroa deu o que pode à tia Delfina, como batatas, cebolas, azeite e carne salgada de porco. A tia Delfina Melra já estava com um bom peso, mas ainda deu para ir onde a patroa deixara as frangas e pegou nelas, trazendo-as de volta. Levou-as à tia Delfina Cigarro e falou:
- Tia Delfina, tome de volta as suas frangas que a pessoa para quem eu as levava, não aceitou!
Inteligente, aí está uma situação que dá razão ao ditado “ viver tudo mundo vive, o bom é saber viver”.
A mulher do tio Manuel do Corgo ficou calada pois já conhecia a tia Delfina e sabia que ela fazia destas coisas, mas nunca tocava em dinheiro ou nada de casa. Era só nos campos, nas hortas, mas isso todos os pobres faziam. No verão apanhava fruta para comer, passar fome já chegava no inverno que não havia nada. A tia Delfina Melra apanhava o que podia, como todos, mas os lavradores sabiam que era ela porque andava descalça e tinha um dedo de um pé mais pequeno. Marcava o chão e aí já sabiam que tinha sido ela, mas ninguém ralhava, porque ela também não era de se calar.
Era de Bujões e em Bujões só tem gente inteligente. A tia Delfina Melra tinha 7 filhos, 6 mulheres e um homem. Este era o José Melro. Também era um dos que comiam a primeira fruta. Trabalhava nas Quartas como eu e muitos.


Vista aérea das Quartas, uma quinta que pertenceu antigamente a  Manuel Botelho  e antes dele aos Barbosas. Ficava por cima da Quinta da Prelada, perto de Bujões e situada nos limites estabelecidos no foral de Dom Sancho I.
 
Um dia acusaram ele ao Senhor Júlio, que era o caseiro, dizendo que  tinha roubado o pão do Joaquim Padre. O Senhor Júlio falou:
- Zé, se continuares, mando-te embora!
A tia Delfina soube e veio no trabalho e disse para o senhor Júlio e para todos nós:
- Senhor Júlio., o meu filho não roubou o pão do Joaquim Padre. O meu filho não passa fome! Ele come o caldo numa tijela que cabe lá o cu de uma mulher grávida!
Toda a gente riu!
Conta-se, ainda que, uma noite, estavam todos sentados em volta da lareira e uma irmã sentou-se  em frente ao Zé, mas não se acautelou devidamente. O Zé estava com a tijela de papas ao colo e disse para a mãe:
- Oh mãe, diz á minha irmã que se componha, senão ainda verto as papas todas!
A tia Delfina Melra ia à Régua se fosse preciso só para comprar uma caixa de fósforos. Saía de Bujões e até ao Alto da Serra ia sempre gritando para uma das filhas, clamando  para lhe dar um recado!
Era assim a tia Delfina Melra, que Deus  dê paz na sua alma!
Texto de Domingos Teixeira
Caderno 3
 
 
Nota do blogue:
Não costumo comentar estes textos que são a memória viva do tio Domingos Teixeira, sempre respeitoso a escrever sobre quem quer que seja. Ainda falta colocar muitos textos que ele escreveu nos caderninhos.
Também eu me lembro da tia Delfina das Dores Barbosa Cardeal (este deveria ser o seu nome completo) e aqui deixo um pouco da sua história:
Nasceu em Bujões em 16 de Abril de 1894, sendo filha de José Maria Alves Cardeal e Joana Alves Barbosa e neta paterna de António Alves Cardeal e Dona Ana Bernardina e materna de Francisco Caetano e Rosa Barbosa.
Viria a casar em 17 de Dezembro de 1913 com António Timpeira e faleceu em Bujões no dia 1 de Novembro de 1972.
António Timpeira, filho de Felizardo Timpeira e Ana Alves, esta de Vila Seca de Poiares, nasceu em Bujões em 20/8/1893 e faleceu em Santa Iria de Azoia, cerca de Lisboa, em 1978.
Era neto paterno de Joaquim Timpeira e de Maria Serqueira e materno de António Alves e Maria Fernandes.
Antes de Delfina das Dores ter nascido, os pais tiveram uma outra filha a quem deram o nome de Delfina Rosa, nascida em 1880, e que faleceu em 1884. Certamente quiseram homenagear aquela filha, dando o mesmo nome de Delfina a esta que nasceu 10 anos depois. Mas também terá sido pelo facto de a madrinha ser Delfina Comba.  
José Maria Alves Cardeal e Joana Alves Barbosa, pais de Delfina,  receberam da Comissão Distrital uma criança abandonada na Roda de Vila Real, de nome Silvina, baptizada em 14/8/1884, e tinham por missão cuidar dela, para de certo preencher o lugar daquela que falecera.
Infelizmente, Deus não quis que esse gesto tão bonito tivesse plena realização. De facto, Silvina, faleceu em 9 de Setembro de 1884.
Delfina das Dores, que viria a ficar conhecida como a tia Delfina Melra, possuindo uma alcunha como quase toda a gente em Bujões, tinha como todos nós defeitos e virtudes. Só a circunstância de ter criado dos seus filhos no meio de tanta necessidade, é mais do que suficiente para merecer uma palavra de louvor e respeito, mesmo de profunda admiração.
Sendo Bujões uma aldeia tão pequena, não deixa de ser curioso que só há pouco tempo compreendi a razão porque a tia Delfina me pediu um dia, quando eu  me deslocava com uma caixa de sardinhas para Vilarinho, para lhe dar duas sardinhas, dizendo  ela que era minha tia.
Eu respondi que só se a minha mãe deixasse, não fosse ainda sofrer eu algum castigo!
Ela não era de facto minha tia, mas sendo Luísa Alves Cardeal minha avó paterna, ela era, sim, prima de meu pai que nunca usou o apelido Cardeal, mas cujo nome correcto deveria ser João Cardeal Paula.
Também eu acredito que esta bujoense descansa em paz na serenidade do outro mundo onde não terá que lutar pela sobrevivência dos seus familiares, alguns dos quais já estão junto dela. Outros, sobretudo netos, acabaram por singrar na vida com muito esforço e persistência e a árvore continua e continuará a crescer.  
Garanto que se fosse hoje,  eu daria à tia Delfina das Dores não duas sardinhas, mas uma boa dúzia delas… porque quer queiramos quer não, a pobreza que nos marcou a existência não deve ser nunca esquecida e cada um de nós viveu aqueles momentos sentindo sempre a protecção das nossas mães, e não interessa agora opinar se houve quem o fizesse com maior ou menor empenho. Houve, sim, um traço comum em meio a tanta pobreza. Sentia-se carência de tudo, mas nunca falta de dedicação e amor pelos filhos, tentando que houvesse ao menos uma malga de sopa para aconchego do estômago. Nessa batalha triunfou, ao lado de tanta mãe bujoense, a tia Delfina das Dores Cardeal. A tia Melra como sempre foi conhecida! 
Bem arrependido estou de não lhe ter dado as duas sardinhas, até porque em Vilarinho o tio Barandas logo me comprou a caixa toda de uma vez. O melhor negócio da minha vida! Subi a costa para Bujões sem nunca olhar para trás...
 




HORTELÃO
 Vou falar de um senhor que eu conheci em menino. Ele já era de idade, mas trabalhava tanto que morreu no trabalho. Era casado. A esposa também era de idade. Tinham 3 filhos, 2 homens e uma mulher. Esta chamava-se Custódia, um filho chama-se Gaspar e o outro era o Joaquim, que ficaria conhecido como o Joaquim Padre. O pai se chamava Diogo Padre e a esposa Maria. Ele e o filho Joaquim trabalhavam nas Quartas. O tio Diogo já cansado do trabalho e da idade, foi tratar das hortas por ordem do senhor Júlio que era o caseiro. Era serviço leve. Eu era um rapaz e também trabalhava nas Quartas. Quando era serviço mais pesado, o senhor Júlio me mandava ajudar o tio Diogo Padre. Ele ia todo o ano a Galegos que é uma aldeia na serra. O tio Diogo ia lá e comprava milho, feijão e batatas e outras coisas. Vinha um carro de bois carregado de tudo. Era a casa mais farta de Bujões.


Que ricas côdeas!
 
A tia Maria assava o pão em casa. Tinha fartura de pão. O tio Diogo levava uma saca cheia de pão e só comia o miolo. As côdeas dava-as para mim, que eu era difícil levar pão. Para nós era miséria. O tio Diogo Padre falava que ele achou uma porção de libras em ouro debaixo de uma escada que davam para subir para a Cortinha. Era ele que falava e outros acharam em outros lugares. Na Cruz do Senhor do Encontro, e outros lugares, ainda tem mais tesouros escondidos. São achados por acaso como aconteceu ao tio Manuel Capitão, de Fontelo. Tinha cabras, andava tirando o estrume da loja e encontrou umas libras em ouro. Não se sabe quantas foram mas mudou a vida dele, como o tio Diogo Padre, mas não deixou de trabalhar. O tio Diogo Padre andava numa propriedade trabalhando e apareceu morto. Houve umas suspeitas mas nunca nada foi provado.
Em Vilarinho do Tanha havia muito vinho mas o povo está situado num buraco ruim.


A rampa de acesso ao centro de Vilarinho do Tanha
 
Para tirar o vinho de lá, vinham carreiros de diversos lugares. Vinham de Covelinhas para carregar o vinho de Vilarinho. Para chegar a Bujões tinha lugares que eram precisas duas juntas de bois para levar uma pipa de vinho.



De Vilarinho para Bujões eram precisas duas juntas para transportar uma pipa de vinho
 
Os carreiros passavam pelo lugar onde o tio Diogo Padre trabalhava. Eram lameiros do Senhor Lacerda que morava em Covelinhas. Os carreiros roubavam o milho e outras coisas para os bois comerem. O tio Diogo queixou-se ao senhor Júlio. Este falou com o senhor Lacerda que chamou os Leonardos que eram os carreiros de Covelinhas e disse-lhes para não roubarem mais nada dos lameiros dele.


Covelinhas, beleza da natureza, com a Casa do Sr. Agostinho de Lacerda ao lado da curva da estrada.
 
O senhor Lacerda mandava em Covelinhas. Todos lhe guardavam respeito. Como o tio Diogo apareceu morto, houve suspeitas, mas nunca foi provado nada.
 


O milho e as suspeitas, mas nada ficou provado.


O tio Diogo faleceu, está no Céu. Que Deus dê paz à alma dele. Ámen!
 
Nota do blogue:
Em 10 de Dezembro de 1900, Diogo Barbosa, filho de Joaquim Barbosa e de Josefina de Sousa, ou Josefina Santos, casou com Maria da Conceição Santos.
Josefina era filha de Jerónimo Cardeal e Luiza dos Santos.
Tiveram vários filhos, alguns dos quais faleceram ainda crianças. Gente de trabalho, membros da grande e antiga árvore dos BARBOSA, alguns deles também deixaram a sua singela marca na nossa aldeia:
Jose, nascido em 27/9/1901
Manuel, nascido em 19/9/1903
Custódia, nascida em 8/11/1905
Maria Luísa, nascida em 4/9/1907
Gaspar, nascido em 6/6/1909
Joaquim, que ficou conhecido como Joaquim Padre, nasceu em último lugar, e foi um homem que sempre erguia bem alta a cruz de Jesus Cristo, em cerimónias de óbito, procissões, Páscoa, etc.



OS CALÇA LARGA

 Vou falar de uma família muito conhecida pelo apelido. É conhecida até fora de Bujões. Estou falando da família Calça Larga. Tio António Calça Larga, sua esposa Margarida Calça Larga e quatro filhos, dois homens e duas mulheres. Uma se chamava Rosalina Calça Larga e outra se chamava Rosa. Não se pode esquecer o apelido Calça Larga.

Tinha o António Calça Larga, filho, e o Manuel Joaquim, Calça Larga. Moravam na casa pegada à do tio José Comba. Hoje moram lá o José e a Clotilde. A Rosalina casou com o José Xota, de Guiães. O António casou com a tia Maria da Glória, filha da tia Guiomar do Moirão. O Manuel Joaquim e a Rosa quando os conheci ainda estavam solteiros. O Manuel Joaquim casou com a Celeste, filha do tio Francisco Comba. A Rosa ficou sozinha na casa. A mãe faleceu. O Manuel Joaquim casou e ela ficou vivendo na casa, só, por muito tempo.

A Rosalina casou com o Xota e foi morar em Guiães. Tinham umas terras onde colhiam tudo. Tinham muita fruta, umas terras grandes, chamadas a Mina. Na Mina tinha terra para plantar tudo, hortas onde colhiam tudo para o gasto da casa. Viviam fartos. Os filhos estavam casados e trabalhavam cada um para si, nas suas terras. A mãe e a filha Rosa eram quem faziam todo o serviço. O tio António Calça Larga e a esposa saiam todos os dias, ainda de noite, e iam para a Mina trabalhar porque havia serviço para fazer. Vinham ao meio dia, cansados de trabalho e calor, comiam e iam descansar para de tarde voltarem ao trabalho. Infelizmente o tio António Calça Larga não voltou mais ao trabalho. Tiveram uma brincadeira que o tio António Calça Larga acabou sem vida. Falam que foi uma fruta que o homem comeu. Uma fruta muito gostosa, mas é muito ingrata e que matou o tio António Calça Larga. Ficou o tio António Calça Larga filho e a Margarida Calça Larga, a Rosa e o Manuel Joaquim que ainda estavam solteiros. O Manuel Joaquim logo casou com a Celeste. Era meu amigo.

Trabalhamos juntos na Quinta da Laceira. Ele já era um homem casado e eu era um rapaz que ainda não ganhava como homem. Ganhava como menor. Mais tarde eu trabalhava em Vila Seca na casa do senhor João Ubaldo.
A casa que foi do Sr. João Ubaldo, mais conhecido em Bujões por Sr. João Baldes ( em 1º plano)
 
Ele devia favores ao Senhor João Ubaldo. O Manuel Joaquim Calça Larga quando era para comprar umas terras já sabia onde estava o dinheiro. Por isso quando era preciso homens para fazer um serviço ia em Bujões, falava com o Manuel Joaquim e ele vinha e e arranjava homens bons de trabalho. O Manuel Joaquim sabia que o senhor João Ubaldo tratava bem o pessoal, não faltava comida e bebida, mas também era ougado por serviço que ele era um grande trabalhador. Ele andava no meio dos homens trabalhando. Andava o dia todo que não levantava as costas. Por isso para trabalhar com o Senhor João Ubaldo tinha que ser bom de serviço ou preso por algum favor que não era só por emprestar dinheiro. Eram outros favores que ele fazia a todos que o procuravam. Em Bujões havia muitos, como o Manuel Joaquim Calça Larga, seus pais e restantes filhos. A tia Margarida Calça Larga ficou viúva, na companhia dos filhos. O Manuel Joaquim casou e ficou a Rosa e a mãe tocando o serviço que era muito. Os irmãos iam ajudar. Houve partilhas e cada um tomou conta da sua parte. A tia Margarida Calça Larga faleceu e ficou a a Rosa só. Com mais de 30 anos, cansada do trabalho, sempre carregava alguma coisa de casa para a Mina. Levava um cesto de estrume da Mina e trazia sempre o cesto cheio. Ela me chamava aos domingos para ir na Mina com ela ajudar alguma coisa, como apanhar figos, maçãs, batatas, cebolas e outras coisas. Eu já ia em casa, ia com ela para a Mina , voltava com ela. Eu já tinha 15 para 16 anos e ela tinha mais de trinta anos. Já havia gente que falava – “ Domingos a Rosa podia ser tua mãe!


Ela podia estar a levar a coisa a sério, mas eu não. Era muito novo para ela e a minha ideia era casar com a Modesta e ir para o Brasil. E foi o que aconteceu. A Rosa casou com um senhor de São Martinho, que já não era novo  e se davam muito bem. Tiveram uma filha, não sei se houve mais.

Comigo e com a Rosa só houve respeito. Ficou o tio António Calça Larga filho. Era um homem forte, alto, trabalhador. Era gago. Casou com a tia Maria da Glória, como já falei, filha da tia Guiomar do Moirão. Tinha outra filha chamada Maria José que casou com o Luís Serralheiro. Este trabalhava em Vila Seca. Todas as noites ele vinha do trabalho e logo que chegava ao Alto da Serra começava a cantar. Só se calava quando chegava em casa. Era alegre!


Lembrança e semelhança do saudoso tio Luís Serraleiro, cantando em cima do burro, desde o Alto da Serra até casa!
 

O tio António Calça Larga casou com a tia Maria da Glória. Era trabalhador. Só trabalhava nas suas terras. Era um bom lavrador.

O Manuel Joaquim Calça Larga casou com a Celeste, filha do tio Francisco Comba. Como já escrevi, a Rosa Calça Larga casou com um senhor de São Martinho. A Rosalina Calça Larga casou com o José Xota de Guiães. Moraram muito tempo em Bujões. Era bravo, gostava de briga. Me recordo, eu ainda era rapaz, e o tio José Xota teve uma briga com o tio Joaquim Sesteiro. A briga foi debaixo da varanda dos Soqueiros, na Eira do Senhor Araújo. O tio José Xota levou 32 facadas. Esteve internado no hospital de Vila Real. Falavam que tinha morrido, mas não morreu. Durou muito tempo e era um homem bom mas gostava de apanhar. Toda a família era de briga.

Havia três famílias em Bujões que impunham respeito. Era a família Marta, a família Peniche e a família Xota. Isso era antigamente. Martas e Peniches tinham bois, e aí só havia briga das fortes. Hoje é tudo calmo. Lá diz o ditado “ O tempo cura todos os males”!
Isto é conto de velho.

Calça Larga era uma família que estava esquecida. Tem muitas em Bujões. Como já falei, todos os moradores de Bujões têm uma história. É só colocar um pouco de óleo no computador, solta a ferrugem e logo aquele funciona. Bom, se aparecer alguém para comprar, eu vendo, enquanto não ficar ruim. Vou falar coim um Calça larga para comparar. Eles eram aventureiros para comprar terras! Mas se for oferecer mandam jogar no ferro velho. Por isso, deixa estar onde está. Já falei muito da família Calça Larga. Agora vou parar e pensar na que na próxima vou contar a sua história. Calça Larga não vem mais. Era gente boa. Já estão todos no Céu. Que Deus dê paz na alma de todos os Calça Larga.

 Este caderno demorou para sair. Estava eu parado, mas chegou dia 1 de Novembro, Chegaram todos os santos e me ajudaram a terminar. Graças a Deus. Eu já não tenho condições de fazer visita, mas um amigo que me queira visitar será bem recebido. Um abraço para todos em especial ao meu amigo José Paula. Saúde! São estas as palavras de um amigo!

 
Domingos Teixeira
3º caderno
 

 

Nota:

Logo que possível, continuaremos com outro  texto 

 

1 comentário:

  1. bela memória do meu pai e tão bem escrito por jose de paula essas histórias, que é uma recordação do passado.

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